O plenário do STF está prestes a julgar o crime de porte de drogas para uso próprio, com a chance de promover avanços e inserir o Brasil num patamar de vanguarda. Basicamente, discute-se se o consumo de drogas é uma autolesão e, assim, pode ser tratado como crime, conforme dispõe o art. 28 da Lei 11.343/2006. Coloca-se na pauta do Tribunal um dos temas mais polêmicos e repletos de tabus: a política de drogas no Brasil. É a primeira vez que a mais alta Corte de Justiça brasileira discute, seriamente, se cabe ou não ao Estado interferir na liberdade do usuário de drogas por meio da repressão penal.
A Lei considera crime adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Apesar de não haver mais previsão de pena privativa de liberdade ao usuário, todas as demais consequências de uma condenação persistem nos seus registros, como os antecedentes e a possibilidade de reincidência. Retirou-se a pena de prisão, porém, mantiveram-se todas as circunstâncias estigmatizantes que perseguem o condenado até o final de sua vida.
Responder judicialmente por um crime, mesmo sem o encarceramento, é um grande abalo para qualquer pessoa, especialmente a quem tem como histórico “criminoso” somente o uso de drogas. Inicia-se uma rotina tormentosa de comparecimento perante a autoridade policial, posteriormente a apresentação à autoridade judicial, os protocolos, enfim, constrange-se exageradamente o sujeito que apenas deseja consumir uma substância que, por mera escolha do Estado, é considerada ilícita. Afinal, quantas outras substâncias prejudiciais à saúde estão expostas à venda em bares, supermercados, docerias, lanchonetes, redes de fastfood?
O argumento mais comum na doutrina e na jurisprudência, com poucas exceções, para a manutenção da criminalização do porte de drogas para uso próprio é o tão batido bem jurídico saúde pública. É até difícil rebater o argumento porque não há o devido aprofundamento no assunto, apenas são feitas referências ao bem tutelado pela Lei de Drogas, sem, ao menos, definir o que seja saúde pública e como a mesma é afetada ou colocada em perigo quando alguém decide usar o entorpecente. O poucos que tentam justificar a criminalização – e não apenas citar o bem jurídico – dizem que os usuários, em seu conjunto, poderiam afetar a saúde pública, pois haveria o caos se mais e mais pessoas passassem a consumir drogas se estas fossem legalizadas.
Esse argumento da saúde pública não se sustenta. Vejamos apenas um exemplo prático. Para a Organização Mundial de Saúde, a obesidade é considerado um problema de saúde pública. Ou seja, cada pessoa que consome alimentos ricos em colesterol ou gorduras saturadas, em tese, colabora para aumentar o problema da obesidade na sua comunidade. Ao levar adiante o mesmo raciocínio empregado às drogas ilícitas, deveria ser crime fritar bacon para comer acompanhado de um refrigerante repleto de açúcar. Ora, quanto mais indivíduos consumirem bacon e refrigerante, maiores as chances de um colapso da saúde pública. Totalmente absurda essa hipótese!
Então, qual a legitimidade do Estado em interferir na liberdade individual por meio de normas penais? Quando o Estado impõe ou impede um comportamento, contra a vontade da pessoa, por entender que se trata da melhor opção, temos uma atitude paternalista. Quer dizer, o Estado assume o papel de “pai” do cidadão que, em sua concepção, não sabe o que é melhor a si mesmo. Praticamente, as pessoas são reduzidas à condição de crianças vulneráveis, como se precisassem de proteção contra suas próprias decisões. Há certas situações em que o paternalismo do Estado é legítimo, no entanto, essa legitimidade só existe na ausência de autonomia.
As pessoas autônomas não precisam de proteção contra suas próprias decisões. O Estado deve interferir somente quando a vontade manifestada não coincide com a vontade real, como nos casos de coação, fraude ou desespero emocional, ou quando a pessoa não possuir plena capacidade de discernimento. E, mesmo assim, a intervenção estatal na liberdade não precisa ser, necessariamente, penal. Em nome do princípio da fragmentariedade do Direito Penal, as leis de natureza criminal só podem ser utilizadas quando não houver outra solução eficaz.
No caso das drogas, lícitas ou ilícitas, seu uso pode provocar danos à saúde individual. Entretanto, não é a repressão pelo Direito Penal a solução do problema. A História demonstra que a humanidade sempre consumiu drogas, em qualquer civilização, em qualquer período. Essas substâncias, com capacidade para provocar dependência ou alterações, sempre existiram, em maior ou menor importância, inclusive de forma legalizada. Afinal, quantas autoridades, que hoje defendem a criminalização das drogas, já não brindaram algum evento com taças de espumantes, cuja composição contém álcool?
A política de drogas com sustentação na repressão penal já demonstrou ser um fracasso. A chamada “guerra às drogas”, originada nos EUA, só aumentou a violência, ceifou inúmeras vidas e movimentou incalculável quantia de dinheiro sujo. Acabar com o consumo de drogas é uma utopia, não obstante, reduzir a violência gerada pelo tráfico ilegal é possível. Se o Estado investir na política de redução de danos ao invés de sustentar o enfrentamento bélico, certamente os resultados serão mais saudáveis à sociedade. As consequências da prioridade à repressão penal no combate às drogas são conhecidas: quem mais sofre são os moradores de bairros periféricos, esmagados pela força do tráfico, de um lado, e pela truculência policial, do outro.
Aguardemos a decisão do STF. A descriminalização do porte para uso próprio já é um grande passo para eliminar a “guerra às drogas” e implementar métodos menos doloridos para reduzir seu consumo. Não pode o Direito Penal fazer uso de conceitos abstratos e indefinidos para “criar” bens jurídicos, na tentativa de legitimar a intervenção indevida na liberdade individual. Cada um tem o direito de escolher seu modo de viver, suas opções de trabalho e de lazer, desde que não prejudique interesses de terceiros. Se há tolerância para certas drogas prejudiciais, atualmente lícitas, como álcool e tabaco, não há razão para proibir o consumo das demais. Se a droga é um problema de saúde pública, que assim seja tratado. Considerar o usuário um criminoso apenas agrava o conflito.