O tráfico humano passa por aqui

Entrevsta ao Jornal Correio Popular de Campinas

Tese mostra que Brasil está na rota das organizações da prostituição.

Abordar temas que envolvem os direitos humanos – especialmente, o desrespeito a eles – é uma constante no trabalho da autora de novelas Gloria Perez, no ar com `Salve Jorge`, trama das nove da `Globo`. Ela, que já falou de consumo de drogas em `O Clone `(2001), pedofilia em `América` (2005) e preconceito social em `Caminho das Índias` (2009), agora discute o tráfico de pessoas. O assunto também é esmiuçado por João Paulo Orsini Martinelli em tese de pós-doutorado em direitos humanos na Universidade de Coimbra, em Portugal.

Em seu estudo, Martinelli, professor de direito penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie de Campinas, aponta que a nova posição do Brasil na economia global colocou-o na mira de organizações criminosas que atuam com tráfico humano. Além de enviar cidadãos, principalmente mulheres, para o Exterior, ele afirma que o País passou a receber pessoas destinadas ao trabalho escravo e à prostituição.

Metrópole – Qual é o perfil das vítimas do tráfico humano?

João Paulo Orsini Martinelli – São indivíduos carentes, provenientes de nações pobres. Na América do Sul, o Brasil é o País com maior rota de tráfico de pessoas, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Outras nações com alto fluxo são Cuba, Coréia do Norte, Irã e Holanda. Cerca de 80% das vítimas são traficadas para exploração sexual e a maioria é formada por mulheres e adolescentes de ambos os sexos. Este ano cresceu também o número de travestis. Do restante, 16% são traficados para trabalho escravo e 4%, para remoção de órgãos.

O senhor afirma que o Brasil é o principal país sul-americano no ranking do tráfico de pessoas. O governo tem feito algo para mudar esse cenário?

A Organização das Nações Unidas (ONU) dividiu os países em três níveis referentes ao tráfico humano. No nível 1 estão os que cumprem as diretrizes do órgão para combater o tráfico; no nível 2 estão aqueles que não cumprem, mas se esforçam para fazê-lo, e no 3 estão as nações que não cumprem nem se comprometem a seguir as diretrizes. O Brasil está no nível 2. Apesar disso, há uma conivência das autoridades brasileiras em relação à prostituição. Mesmo a lei dizendo que é crime explorar a prostituição, muitas casas de programas são registradas como bares, clubes de entretenimento ou diversão. Como há essa conivência do poder público, é nesses locais que muitas mulheres escravizadas trabalham.

Para onde vão as pessoas que saem do Brasil nas atividades do tráfico?

Principalmente, para o Suriname, que é a porta de entrada para a Holanda, onde a prostituição é regulamentada. Há grande fluxo também para Espanha, Portugal e Itália, onde há facilidade com o idioma.

Mas existe também um fluxo desses indivíduos rumo ao Brasil…

Sim. O principal grupo de traficados para o Brasil é composto por bolivianos, que vêm para ser explorados sexualmente e para o trabalho escravo. Atualmente, há um crescente número de haitianos que chegam ao País, não encontram trabalho e acabam parando nas mãos de organizações criminosas, indo então trabalhar na prostituição.

E para que locais eles vão?

O tráfico humano no Brasil já se transformou num problema endêmico. No Nordeste, tem a questão do turismo sexual, que é muito forte. São Paulo é destino para quem vai trabalhar na prostituição e no trabalho escravo. O foco de prostituição é maior na região Norte, principalmente onde há exploração de minérios e construção de barragens. Os trabalhadores passam muito tempo longe da família e, por isso, há demanda por prostitutas. Outro foco está concentrado nas áreas de fronteira com a Bolívia e o Peru.

Em sua tese, o senhor defende que o crescimento econômico do Brasil contribuiu para o aumento da exploração humana no País. Por que isso acontece?

As organizações criminosas e as pessoas buscam lucro onde existe dinheiro, e esse é o momento do Brasil. O desenvolvimento econômico vem transformando o País também num grande importador de prostituição e trabalho escravo por meio do tráfico.

A globalização e a facilidade para se realizar viagens internacionais são também facilitadores da escravidão de brasileiros em outros locais?

A globalização é a principal responsável pelo desenvolvimento do tráfico humano no mundo. Esse processo foi iniciado na década de 1980, quando passamos a viajar mais, a ter acesso a mais informação. No caso dos brasileiros, é ainda pior, pois assistimos a um aumento no fluxo turístico e isso dificulta a fiscalização. Fica complicado para as autoridades brasileiras e estrangeiras identificarem se a pessoa está viajando a turismo ou para trabalhar de maneira ilegal ou escravizada.

Ainda no estudo, o senhor aponta um tipo de tráfico em que a vítima é consciente. Por que ela se deixa traficar?

Porque, antes de tudo, ela é vítima de vulnerabilidade socioeconômica em sua terra natal. Ela sofre com a deficiência de recursos materiais e culturais e, então, sai em busca de melhorias para sua condição. O problema é que essa pessoa, mesmo consciente do que está fazendo, não tem a dimensão do que irá enfrentar. Pensa que vai fazer programas na hora que quiser, trabalhar o quanto quiser, que terá uma certa liberdade… Depois, vê que não é assim, que existe um mínimo que deve ser arrecadado por dia. Também não imagina que precisará pagar a viagem, as despesas de alimentação e hospedagem. A pessoa acaba se tornando uma espécie de escrava, propriedade de criminosos que a tratam como numa relação mercantilista.

Por quanto tempo, em média, uma pessoa permanece escravizada?

Não existem dados que apontem com exatidão o período, mas reportagens e pesquisas indicam que as mulheres podem ficar até 20 anos nas mãos das organizações. Elas são descartadas somente quando deixam de ser atraentes e não dão mais lucro. Na maioria dos casos, são abandonadas no local onde estão trabalhando, sem moradia, documentos nem recursos para voltar ao país de origem.

E por que a vítima nunca acusa o traficante?

Assim que chega ao destino, ela tem seus documentos confiscados. E, mesmo que consiga fugir e procurar as autoridades, ela entrou no país com visto de turista e não tem como explicar que está ali trabalhando sem permissão para isso. Se denunciar o traficante, corre o risco de ser extraditada. Para aquelas que conseguem fugir e voltar para casa também há riscos, porque há máfias atuando em várias partes do mundo – quando a pessoa retorna, pode ser alvo de retaliação onde mora. Tem ainda a questão da vergonha da família. É muito difícil assumir publicamente que estava trabalhando com prostituição.

De que maneira a vítima é assediada?

De modo geral, o traficante se aproxima para obter informações. Há muitos casos em que a vítima é escolhida a partir da sugestão de pessoas bem próximas, até mesmo da família.

A internet é também uma ferramenta para o tráfico?

Sim, principalmente para a prostituição. Existem muitos sites do tipo classificados, em que o usuário entra, escolhe uma mulher, contrata o programa e é atendido onde quiser, em casa ou num hotel. Outras páginas disfarçam a prostituição, oferecendo serviços de casamento. Na verdade, não passam de catálogos de mulheres em que não há sentimento, apenas um serviço sexual.

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