Da urgente e necessária revogação do crime de desacato no ordenamento jurídico brasileiro.
O seguinte texto é familiar à maioria das pessoas, inclusive aquelas que não são da área jurídica: “Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”. Quem já precisou de serviços públicos, e foi a uma repartição pública, certamente deparou-se com o aviso que informa que qualquer coisa que for dita contra o servidor pode configurar desacato sob pena de responsabilidade penal. São comuns as placas com a descrição do art. 331 do Código Penal como um aviso de boas vindas.
O crime de desacato guarda resquícios do autoritarismo do Estado Novo, período em que entrou em vigência nosso Código Penal, cuja parte especial ainda apresenta partes originais da época. Os crimes contra a Administração Pública são excessivos em nossa legislação porque, como é comum nas ditaduras, o Estado está acima da pessoa humana. Ofender o servidor público, no exercício da função, ou em razão dela, sempre foi compreendido como um atentado ao Estado que o ofendido representa. É, mais ou menos, uma reprodução codificada da célebre frase “o Estado sou eu”, atribuída a Luis XIV da França, monarca absolutista.
Em 2002, o Relatório Anual da Relatoria para a Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afirmou que “as leis de desacato são incompatíveis com o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos”. Conforme o relatório, “a CIDH concluiu que tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar idéias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas. A CIDH declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos. Em consequência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se refere à função pública. Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas, pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções fiduciárias.
O art. 13 da CADH protege o direito à liberdade de pensamento e de expressão. E justamente pela falta de um conceito fechado de desacato qualquer comportamento que desagrade o servidor público pode ser interpretado como tal e gerar problemas ao sujeito. Desacatar significa desrespeitar, ofender, profanar. Mesmo quando os Tribunais superiores invertem condenações arbitrárias, um longo caminho de desconforto e estigmatização deve ser percorrido por quem foi condenado ou respondeu pelo crime. Exemplos não faltam na jurisprudência, como o cidadão que manifestou indignação com a qualidade do serviço público prestado em determinada repartição (STJ, RHC 9615/RS), o advogado que aplaudiu ironicamente a atuação do promotor no Tribunal do Júri (STJ, HC 111713/SP) ou o sujeito abordado que manifestou menosprezo pelo trabalho policial (STJ, HC 243983/DF). Ainda que ofensas graves fossem proferidas ao servidor público, o problema é apenas dele, enquanto pessoa, e não do Estado. A condição de servidor não transfere à pessoa a figura do Estado, portanto, não pode haver essa desequilíbrio de um tipo penal incidir apenas sobre um grupo de pessoas ofendidas.
Quando um servidor público é ofendido no desempenho da função a ofensa atinge sua honra, qualidade da pessoa, e, portanto, a figura delitiva deve ser a injúria. A própria causa de aumento de pena prevista em lei (art. 141) para o crime contra honra praticado contra servidor é bastante duvidosa, pois lhe confere uma condição diferenciada sobre as demais vítimas. A causa de aumento, que reflete um maior juízo de reprovabilidade, caberia apenas nos casos de maior vulnerabilidade da vítima, como nos casos de injúria racial. No caso do servidor, ao contrário, fica difícil apreciar essa vulnerabilidade, uma vez que os mesmos possuem certas garantias não alcançáveis pelas demais pessoas. Ademais, quando um servidor pratica crime contra a Administração Pública, sua condição autoriza um juízo maior de reprovabilidade, não porque representa a figura do Estado, mas porque há um dever de cuidado sobre o erário público, que não lhe pertence.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a Convenção Americana de Direitos Humanos possui status de norma supralegal (RE 466343/SP), o que lhe confere posição acima do Código Penal. E sempre que houver um conflito entre a Constituição Federal e um Tratado Internacional de Direitos Humanos deve prevalecer sempre a norma que atribui maior proteção aos direitos fundamentais, no caso, a liberdade de expressão. Nesse sentido, corretamente conclui Bruno Galvão: “a decisão judicial final que condena o réu ao cumprimento de pena por ter cometido o crime de desacato viola a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos nos artigos 7 (2) – Liberdade Pessoal e 13 – Liberdade de pensamento e expressão” (Consultor Jurídico, 15/09/2012).
As condenações judiciais, em qualquer instância, por crime de desacato, ferem a Convenção Americana de Direitos Humanos e autorizam a representação do Brasil perante a Comissão Interamericana para posterior julgamento pela Corte. No dia 26/04/2013, a Defensoria Pública da União encaminhou representação à Comissão Interamericana com a notícia de que o Brasil não cumpriu a determinação de retirar o crime de desacato da legislação e, ainda, requereu a revisão de todas as condenações e a respectiva indenização aos condenados. Também a Defensoria Pública do Estado de São Paulo representou o país perante a Comissão pelos mesmos argumentos.
É fundamental que o desacato desapareça do ordenamento jurídico. O crime é um instrumento de arbitrariedade, que supostamente fundamentaria prisões em flagrante de quem desagrade um servidor público. Não há parâmetros que delimitem o alcance da incriminação, assim, qualquer coisa pode ser desacato. Enquanto não há revogação legal, cabe ao Poder Judiciário deixar de aplicar o art. 331 do Código Penal, pois este afronta um dos mais importantes tratados internacionais reconhecidos pelo Brasil. A ofensa ao servidor é um problema exclusivamente dele, da mesma forma que sempre foi para os demais cidadãos.
(originalmente publicado no portal Justificando)