Algumas reflexões sobre a execução do brasileiro na Indonésia
Sempre agradeço a meus pais por terem me dado a oportunidade de ser alfabetizado e estudar. Na realidade brasileira, na qual muitos jovens precisam dividir os estudos com o trabalho para sustentar a família, sinto-me privilegiado por ter dedicado meu tempo às leituras e ao aprendizado. Nunca me senti um intelectual ou uma pessoa culta, porém, nunca neguei a paixão pela literatura. Não apenas contos e romances me fascinam, tenho grande interesse por filosofia – apesar das grandes dificuldades em compreender determinados pensamentos tão complexos quanto a física teórica –, história, sociologia, psicologia, enfim, tudo aquilo que me ajuda a compreender o ser humano.
Graças às transformações pelas quais passei ao longo dos anos, sempre que formulo e emito uma opinião busco o equilíbrio da argumentação e fujo do maniqueísmo. Aprendi que o radicalismo deixa o ser humano alienado e gera preconceitos e intolerância, além de levar a discussão ao vazio. Seja uma visão de esquerda, seja uma visão de direita, a ponderação dos argumentos é vital para uma discussão saudável, pois evita a tensão desnecessária entre as partes. As últimas eleições presidenciais foram o maior exemplo, nos últimos anos, de intolerância nos debates. Eleitores polarizaram-se de forma isolada e cega, como se o seu candidato fosse um poço de honestidade e o adversário, a personificação do mal. Como consequência, insultos e manifestações de preconceito tomaram conta das redes sociais e das ruas, em forma de violência física e verbal.
Tudo o que escrevi até aqui é uma forma de introduzir minha opinião sobre a pena de morte e as manifestações em favor ao governo da Indonésia. E aqui escreve alguém que já teve sua adolescência reacionária e sofreu mudanças pelas experiências de vida e muitas leituras. De início, fiquei estarrecido com o clamor de muitos pela execução do brasileiro e a posterior comemoração por sua morte. Além disso, as redes sociais foram tomadas por expressões favoráveis à “importação” das leis indonésias pelo ordenamento jurídico brasileiro. Assim, em busca de uma opinião equilibrada e sensata, lembrei-me de toda evolução intelectual e cultural pela qual a raça humana passou, especialmente desde os sombrios tempos da Inquisição até o Iluminismo e a elevação do ser humano ao centro das ideias.
Sou contra a pena de morte e construo minha opinião por diversos argumentos. Primeiro, sua eficácia é meramente simbólica, pois só oferece uma sensação de vingança, sem reduzir a criminalidade. A Anistia Internacional, com base nos dados oficiais do governo dos EUA, divulgou relatório, em 2009, no qual fica claro que os estados da federação que adotam a pena de morte não conseguiram reduzir os índices de criminalidade. Ao contrário, o relatório aponta até um aumento em crimes apenados com a execução. Se a pena de morte não é eficaz para inibir a prática de crimes, sua finalidade é meramente vingativa. E, salvo engano de minha parte, a pena como vingança é fruto de uma sociedade arcaica, primitiva, na qual os instintos falam mais alto que a razão.
Outro argumento é sua irreversibilidade. Uma vez executado, o condenado não volta. Há um risco muito grande de alguém ser condenado indevidamente, pois os erros judiciários são frequentes. Aliás, todo ser humano é passível de erro. Na realidade brasileira, a falta de estrutura nas polícias judiciárias aliada à seletividade do sistema penal provavelmente criaria uma fila de execução de condenados pobres, negros e marginalizados, já que a grande maioria das condenações no país recaem sobre pessoas socialmente mais vulneráveis, segundo dados oficiais do Ministério da Justiça. Em países que adotam a pena de morte, cito o exemplo do jovem mongol camponês executado na China, em 1996, cuja inocência foi reconhecida em 2014 pelo Poder Judiciário local. Ademais, outro caso interessante ocorreu nos EUA. O adolescente negro George Stinney Jr., executado no estado do Texas, foi declarado inocente 70 anos depois. Estes e outros inocentes foram irreversivelmente condenados à morte e não há indenização suficiente capaz de corrigir o grave erro.
O terceiro argumento é o desvio de finalidade da pena. A sanção criminal deve servir à prevenção de outros crimes com a ressocialização do condenado. A execução apenas livra o Estado de uma obrigação difícil de ser cumprida, é verdade. Entretanto, matar o condenado é jogar o problema para baixo do tapete e fechar os olhos às reais causas da criminalidade. Enquanto países com baixíssimos números de violência, como o Canadá e a Suécia, fazem uso de outros métodos, como a educação eficaz em massa e o combate à corrupção, aqueles que adotam a pena de morte desviam o foco do conflito para um viés politicamente mais visível. Afinal, executar as pessoas “do mal” é uma forma visível de ganhar os votos das pessoas “de bem”.
Especificamente sobre a Indonésia, assim como no Brasil, o sistema penal volta-se às pessoas marginalizadas. O brasileiro condenado certamente não era um grande traficante, nem tinha influência política. Tiro essa conclusão com base nos dados da Indonesia Corruption Watch, uma organização local que divulgou, em 2012, um relatório que aponta o prejuízo de 180 bilhões de euros ao cofres públicos do país, graças à corrupção generalizada. Ninguém foi condenado à morte e executado por esse desvio monstruoso, que contribuiu para a Indonésia ser um dos países mais desiguais e corruptos do mundo. A mesma sociedade local que aplaude a pena de morte para alguns sofre com os desmandos e continua a eleger os corruptos. É uma lógica que vale em países com baixos níveis de educação – semelhante ao que acontece por aqui. Afinal, o brasileiro que clama pela pena de morte é o eleitor do candidato atolado em escândalos.
Finalmente, considerando o caso concreto – tráfico de drogas – a questão vai além da legislação do país. O combate às drogas por meio da criminalização é um fracasso, segundo o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC). O relatório apresentado em março de 2014 defende a descriminalização das drogas e a aplicação das políticas de redução de danos, ou seja, a condenação de um traficante de drogas é, sim, discutível. Diversos líderes mundiais, dentre os quais o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, defendem o fim da “guerra às drogas”, pois manter o seu comércio na ilegalidade mantém o forte poder das organizações criminosas e muitos inocentes sofrem seus efeitos. Quem ganha com a ilegalidade das drogas são o traficante e as autoridades corrompidas, ninguém mais.
Se é para seguir o exemplo da Indonésia, que se aplique a pena capital a todos que colocam em risco a sociedade. A pena de morte deveria valer para quem dirige embriagado, sonega tributos, oferece propina às autoridades, provoca danos ambientais, falsifica e utiliza documentos falsos, faz uso indevido de verbas públicas, enfim, a todos que, de alguma forma, provocam danos a terceiros. Seguindo-se as declarações de amor de brasileiros à legislação indonésia, aqui também deveria haver a pena de morte por apedrejamento a quem praticar o adultério. É claro que tais medidas são absurdas e não resolveriam nossos maiores problemas, que são mais de consciência que de aplicação de pena.
Toda discussão precisa de equilíbrio dos argumentos. Medidas radicais, de qualquer dos lados, tendem apenas a aumentar as tensões e levar a lugar algum. Criminalidade é um problema que existe em todos os pontos do mundo – em maior ou menor intensidade – e não é por medidas extremas e sem eficácia que será resolvido. O mais importante em qualquer conflito é a ponderação dos argumentos na sua resolução e a busca pela solução menos drástica. Não se pode ignorar as inúmeras pessoas que morreram em defesa do humanismo. Afinal, o ser humano é dotado de razão – e evoluiu – para enxergar além dos instintos.
Originalmente publicado no portal Justificando.