O sistema processual de cada país reflete, com certa fidelidade, o ambiente político e o grau de comprometimento das instituições jurídicas com a Constituição Federalvigente. Em Estados ditatoriais, o sistema processual é inquisitório, o que faz do réu mero objeto do processo. Por outro lado, nas democracias estáveis, o réu é considerado um sujeito de direitos, pois prevalece um sistema processual acusatório. Construir um sistema puro e uniforme, nas mais variadas legislações mundo afora, é praticamente impossível, pois há aspectos históricos e culturais envolvidos. No entanto, não restam dúvidas de que o processo penal deve estar sempre atrelado à Constituição Federal de um país e aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais seja signatário.
O sistema processual brasileiro é adjetivado, pela doutrina tradicional, como misto. Costuma-se dizer que há uma fase inquisitória – o inquérito policial – e outra acusatória – o processo. Entretanto, poucos se atentam que o processo penal, como um todo, deve ser constitucional. Em breves palavras, as regras que regem o processo penal devem estar adequadas à Carta Magna. Isso implica reconhecer que nem todos os dispositivos do Código de Processo Penal podem ser aplicados, pois esse diploma é bem anterior à Constituiçãode 1988. Pior, nosso CPP teve sua edição durante a vigência da Constituição de 1937, apelidada de “polaca”, em meio a um regime de exceção. Parece claro que, nesse cenário, muito do que foi produzido no plano legislativo entra em conflito com uma Carta Política democrática, que reconhece os direitos fundamentais como núcleo do ordenamento jurídico.
O ponto de partida do processo penal constitucional é o devido processo legal, no qual o juiz é imparcial e o acusado é tratado como um sujeito de direitos (presumidamente inocente), não mero objeto processual. A imparcialidade do juiz exige a clara separação entre as partes do processo – acusação e defesa – e o julgador. Ou seja, quem julga não é parte, por isso deve permanecer inerte. O juiz é o garantidor das liberdades individuais e, portanto, somente para preservá-las poderá agir de ofício. Toda e qualquer restrição de direitos, principalmente a liberdade, deve ser provocada pelo órgão de acusação. Devido ao espaço restrito, analisemos apenas duas situações que demonstram a falta de adequação da prática forense aos princípios constitucionais: as cautelares de ofício e a produção de provas pelo juiz.
As medidas cautelares possuem natureza instrumental, pois são ferramentas atuais que buscam viabilizar uma decisão judicial futura. O processo penal tem por finalidade demonstrar a culpa do acusado para eventual aplicação de pena, portanto, somente as partes possuem algum interesse nas medidas cautelares para permitir efeitos futuros. O juiz de direito – repita-se – é apenas o participante que mantém a legalidade do jogo processual. Não é parte, não tem interesse e, por isso, deve ser provocado. Os atos de ofício somente se justificam na proteção das liberdades. Por não haver interesse do magistrado, as cautelares de ofício violam o princípio da imparcialidade. Decretar uma prisão preventiva ou sequestrar bens sem a provocação significa usurpar a atribuição do órgão de acusação, único interessado na restrição de um direito de quem ainda não foi condenado.
Do ponto de vista das provas, também deve permanecer o juiz inerte. Cabe às partes produzir as provas e buscar o convencimento do julgador. Produzir prova de ofício é resquício de inquisição, pelo qual o juiz demonstra interesse no processo. Em nome de um pseudo princípio da verdade real, autoriza-se o julgador a buscar as provas não produzidas pelas partes. Essa verdade real é contrária ao princípio da imparcialidade. Se houver dúvidas quanto ao fato, deve-se absolver em nome da presunção de inocência. Se a acusação não convencer o juiz, o acusado continua inocente e, portanto, deve ser absolvido. Não cabe prova de ofício sequer para reforçar a inocência, pois está é presumida e só pode ser afastada por provas contundentes em sentido contrário. À luz da Constituição Federal, pode-se afirmar que o magistrado não pode decretar cautelares de ofício para restringir direitos nem produzir provas na instrução. Caso contrário, ficaria impedido de prosseguir na condução processual.
Independentemente de qual denominação seja utilizada, o sistema processual deve obedecer ao devido processo legal, no qual o julgador é imparcial e o acusado é inocente por presunção. O magistrado deve ter a coragem de permanecer inerte, mesmo quando lhe venha a vontade de agir para proteger a sociedade. A inércia da jurisdição é confirmação da falta de interesse de alguém considerado imparcial e não se aplica apenas no início do processo. Na prática forense penal, é muito comum, mesmo que de forma velada, o magistrado dar ao Código de Processo Penal valor maior que à Constituição Federal. Tudo isso demonstra que estamos muito longe de fazer o óbvio: reconhecer a Carta Magna como a norma fundamental e mais importante do ordenamento jurídico.