Existe um Direito Penal do Inimigo no Brasil?

Reflexões sobre alguns dispositivos da legislação penal brasileira.


1. INTRODUÇÃO

Diante da nova criminalidade (o crime organizado, os atentados terroristas, os bens jurídicos difusos) os estudiosos das ciências criminais demonstram que o atual estágio do direito penal não oferece soluções para tais problemas. O direito penal tradicional – e conservador – expõe suas limitações na medida em que as leis estão cada vez mais severas e os índices de criminalidade aumentam rapidamente.

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, a nação mais poderosa do planeta, até então inatingível, sofreu o maior abalo de sua história. Diante do cenário internacional, em todos os lugares criou-se uma situação de terror e impotência. Os culpados precisavam ser encontrados e exemplarmente punidos. No entanto, a solução aplicada foi o combate da violência por meio da violação de direitos fundamentais de quem surgisse pela frente das autoridades ianques. 

Günther Jakobs, um dos mais completos penalistas de todos os tempos, apresentou sua proposta de combate à criminalidade: a doutrina do direito penal do inimigo. O objetivo do trabalho é expor essa doutrina e traças seus pontos comuns com idéias já existentes, assim como demonstrar que o direito penal do inimigo já existe – ainda que discretamente – na legislação brasileira.

2. FUNCIONALISMO DE GÜNTHER JAKOBS

Para um melhor entendimento do direito penal do inimigo, faz-se necessária uma breve exposição da doutrina de Jakobs. 

Seu conceito de direito penal é de um instrumento de manutenção da ordem jurídica, assim como a pena é sempre uma reação à infração da norma. Mediante a reação sempre manifesta-se a necessidade da observância da norma. E essa reação sempre vem às custas do responsável pela infração da norma.[1]

A sociedade somente adquire estabilidade se os cidadãos tiverem a certeza da vigência segura da norma. Ninguém é obrigado a esperar de outrem um comportamento desviante, uma conduta contrária ao ordenamento.

O direito penal constitui um cartão de visitas da sociedade. Existe uma dependência recíproca entre a sociedade e o direito penal: cabe ao direito penal realizar esforços para assumir novos problemas sociais, assim como a sociedade deve sempre ser lembrada pelo direito penal de que é necessário ter em conta certas máximas que se consideram indispensáveis.[2]

Se se pretende que uma norma determine a configuração de uma sociedade, a conduta conforme a norma deve se realmente esperável no fundamental, significando que os cálculos das pessoas deveriam partir de que os demais também se comportarão conforme a norma, isto é, não a infringindo. Sem uma suficiente segurança cognitiva, a vigência da norma se evapora e converte-se em uma promessa vazia.[3]

Resumindo: Jakobs considera que a função do direito penal é a manutenção da vigência da norma através do comportamento conforme as expectativas sociais de cada um.

2. POSICIONAMENTOS DE JAKOBS EM 1985 E 1999

Em 1985, em um congresso realizado em Frankfurt, Jakobs defendia seu primeiro posicionamento sobre o direito penal do inimigo. Demonstrou-se crítico à idéia, inclusive expondo aos presentes que na Alemanha já existia o direito penal do inimigo, pois muitas das leis não respeitavam os princípios básicos do direito penal. Dizia Jakobs que toda criminalização de um ato prévia a uma lesão do bem jurídico não se ajusta a um direito penal legítimo, ou seja, o direito penal do cidadão.[4]

Mais tarde, a mudança de opinião foi radical. Em 1999, em um seminário em Berlin, Jakobs declara que unicamente aqueles que se comportam como pessoas poderão ser tratados como cidadãos. Quem tiver comportamento contrário, deverá ser excluído da cidadania, a ser transformado em inimigo (não-pessoa). Mudou-se do vinho para a água. Jakobs passa aceitar a legitimidade de uma divisão entre os receptores da lei penal: os cidadãos e os inimigos. Estes não aceitam a lei, nem o ordenamento jurídico, enquanto aqueles têm comportamento conforme ao direito. 

Em síntese: no ano de 1985, Jakobs declarou guerra ao ilegítimo direito penal do inimigo, para, em seguida, em 1999, declarar guerra aos inimigos da sociedade.[5]

3. CONCEITO DE INIMIGO

O inimigo é um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o direito de modo supostamente duradouro e não somente de maneira incidental.[6]Por exemplo, aquele que pratica um furto ocasionalmente, ou até mesmo um estupro, sabe que o direito existe, que a norma é vigente, porém, quer desestabilizar o sistema. Para este, que ainda pode ser considerado um cidadão, o direito penal deve oferecer as mais amplas garantias. No entanto, o inimigo é diferente. Para ele, o direito é inexistente, ou nada vale sua existência. A vigência da norma é desconsiderada pelo inimigo.

Para o inimigo, não existe a expectativa séria, de efeitos permanentes, sobre a direção de um comportamento pessoal (com direitos e deveres estipulados), causando a degeneração da pessoa, até esta converter-se em um mero postulado. Assim, o cidadão torna-se um sujeito perigoso, um inimigo.[7]

Segundo o direito penal do inimigo, um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa, ou seja, os direitos e garantias individuais do Estado democrático.[8]

Prittwitz critica a postura de Jakobs, para quem não há demonstração de qualquer interesse pelos indivíduos, pois sua fundamentação do conceito de inimigo – a integração em um grupo que deve ser combatido[9] – resulta desumana e, lamentavelmente, traz de volta os conceitos nazistas relativos à exclusão de determinados grupos de indivíduos.

Retrocedendo na história da dogmática alemã, nos anos 30, Wolf já conceituava “autor” como um membro pessoal da comunidade jurídica com uma atitude interna jurídica corrompida.[10] O cidadão corrompido não se importa mais com qualquer espécie de legalidade, por isso o direito penal não se faz eficaz a ele.

Na chamada “legislação de guerra”, durante o regime nazista, os ordenamentos contra os sujeitos nocivos ao povo continham os tipos de personalidade, dificilmente captáveis, do sujeito nocivo à sociedade e do delinqüente habitual. Dahm aplicou essa legislação de guerra a toda legislação penal, ou seja, ao direito penal tradicional, o que provocou reflexos, posteriormente, na doutrina e na legislação. Após o período das guerras, o direito penal do autor doutrináro[11] perdeu forças mediante as buscas por um direito penal legítimo. No entanto, na atualidade, percebe-se seu ressurgimento na nova doutrina de Jakobs.

4. CONCEITO DE DIREITO PENAL DO INIMIGO

Um direito penal do inimigo implica em um comportamento desenvolvido com base em regras, em lugar de uma conduta espontânea e impulsiva. Tais regras são postas mediante a coação das penas. Justamente porque o inimigo não sente influência do ordenamento para modificar seu comportamento por conta própria, o Estado deve impor regras de punição distintas daquelas dos cidadãos.

Indispensável ter em mente que Jakobs considera o direito penal do inimigo, isolando do direito penal do cidadão, como uma situação liberal e dentro dos padrões constitucionais.[12] Jakobs encara esse “apartheid” jurídico-penal como algo natural do próprio ordenamento, pois é instrumento legítimo de combate aos inimigos.

Há três elementos fundamentais que caracterizam o direito penal do inimigo:[13]

a) amplo adiantamento da punibilidade: a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva, e não retrospectiva. 

O ponto de referência não é um fato passado, é um fato futuro. A punição é prevista para crimes que PODEM ocorrer. A punibilidade atinge os fatos cometidos muito antes da lesão do bem jurídico, é dizer, há o adiantamento da intervenção penal a atos meramente preparatórios, sem a correspondente redução da pena.[14]

Jakobs manifesta sua divisão da seguinte forma: o direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, enquanto o direito penal do inimigo combate perigos.[15]

b) penas previstas desproporcionalmente altas: não há um patamar a ser seguido para a pena em abstrato. Tem-se que a pena elevada é instrumento para antecipar o fato delituoso.

A pena conhecida possui apenas seu limite mínimo, e não o máximo. Assemelha-se a pena à medida de segurança, a partir do momento em que o inimigo deve ser apenado enquanto durar tal situação. Enquanto for considerado como inimigo, o condenado cumprirá pena, sem perspectiva de seu término.

O objetivo de Jakobs é proporcionar à sociedade o exemplo a outros que resolverem sair de seu estado de cidadão para passar à condição de inimigo. Punindo severamente o inimigo, os cidadãos terão a certeza de que não é proveitoso de maneira algum ignorar o Estado de direito.

c) garantias processuais suprimidas: Algumas garantias constitucionais são relativizadas ou mesmo cerceadas do inimigo, pois estas só podem ser plenas aos cidadãos.[16]

O inimigo fica privado de determinados direitos e garantias, tanto materiais como processuais. Não apenas no cumprimento da pena o inimigo é tratado diferencialmente, mas também no processo de conhecimento. Quer dizer, antes mesmo da sentença condenatória transitada em julgado o inimigo já é considerado como tal, em uma espécie de pré-julgamento do Estado.

Jakobs retoma idéias da filosofia e das ciências políticas para desenvolver o direito penal do inimigo. Primeiramente, conclama a Roussseau: qualquer malfeitor que ataque o direito social deixa de ser membro do Estado, pois se declara guerra a este. Assim também é o conceito de Fichte, para quem o inimigo é aquele que comete um “assassinato premeditado”. Em seguida, sustenta-se em Hobbes, pois, em princípio, o delinqüente integra o rol de cidadãos, exceto quando se tratar de rebelião (alta traição).[17]

Para legitimar o direito penal do inimigo, traz a posição de Kant: todo cidadão pode obrigar a outro a entrar em uma constituição cidadã. Quer dizer, quem sente-se lesionado por alguém que ainda se encontra no “estado de natureza” pode obrigar este ofensor a entrar em um estado comunitário, ou então, sendo negativa a reação, que abandone a vizinhança. 

Na Espanha, Silva Sanchéz apresenta postura semelhante. O autor divide o direito penal em três velocidades: a primeira velocidade, o direito penal cujas penas são privativas de liberdade; a segunda velocidade, a aplicação das penas restritivas de direitos; e a terceira velocidade, o direito penal com garantias restritas aos delinqüentes considerados indiferentes ao ordenamento, aqueles para os quais a norma jurídica não surte efeito.[18]

5. DIREITO PENAL DO INIMIGO COMO DIREITO PENAL DO AUTOR

Primeiramente, é fundamental estabelecer a diferença entre direito penal do fato e direito penal do inimigo: no direito penal do autor, não se pune o fato em si, mas o fato como manifestação de uma “forma de ser” do autor, considerada como um verdadeiro delito. O fato teria valor de sintoma de uma personalidade do autor.[19] Em síntese, o direito penal de fato pune o autor pelo fato cometido; o direito penal do autor pune o autor por sua personalidade.

Há dois tipos de direito penal do autor:[20] 1) direito penal de periculosidade: o homem é incapaz de autodeterminação, de definir o bem e o mal; o fato é o sintoma de uma personalidade perigosa, que deve ser corrigida do mesmo modo que se conserta uma máquina que funciona mal; 2) direito penal de culpabilidade: a personalidade que se inclina para o delito na repetição de condutas que no começo foram livremente escolhidas e, portanto, postula que a reprovação que se faz ao autor não o é em virtude do fato, mas da personalidade que este autor revela.

A teoria dos tipos penais de autor contém raízes na Alemanha nacional-socialista. A Escola de Kiel, representada principalmente por Dahm, desenvolve a teoria segundo a qual o sentimento popular é a matéria prima da qual o legislador molda as suas normas. Os tipos penais não proíbem apenas ação, mas também modos de ser.[21]

O direito penal do autor é corrente legitimada pela idéia de anormalidade do criminoso. É uma idéia criticada na doutrina, porém, fortemente presente na operatividade do sistema jurídico penal atual, que seleciona e indica os criminosos que devem ser punidos, incluindo procedimentos como a seleção dos marginalizados para revistas, investigações e reconhecimentos.[22] O sujeito considerado anormal deve ser afastado da sociedade, mesmo que não tenha praticado o delito.

O exemplo atual é a própria prática da repressão ao tráfico de drogas no Brasil. O processo penal, que tem início de fato na abordagem do indivíduo, percebemos facilmente que a polícia não tem interesse em revistar os freqüentadores dos locais de alto padrão. Não obstante, nas periferias a eficiência parece ser maior.

Como exemplo histórico, podemos citar o homossexualismo na Alemanha, que no período de 1993 a 1945 era visto como uma doença e um crime, pois estava fora dos padrões da moral sexual do cidadão comum. Não se encaixava no modelo criado para uma raça moralmente superior.[23]

Esse é o objetivo do direito penal do inimigo: isolar das pessoas consideradas “normais” aquelas que não interessam à sociedade.

5. DIREITO PENAL DO INIMIGO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Apesar da exposição acima ter dado a impressão de que a doutrina do direito penal do inimigo seja uma construção recente na doutrina européia, já encontramos vários indícios de seus conceitos na legislação pátria. Abaixo seguem quatro exemplos que ilustram a situação:

Decreto-lei n.º 314/67 (Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e dá outras providências).

Os artigos 1.º a 3.º definem o a segurança nacional como a “garantia de consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos como externos”. Mas o que é garantia de consecução? Em que consistem os antagonismos? São tipos abertos que permitem uma enorme discricionariedade do juiz. 

Em seguida, diz o artigo 4.º: “na aplicação deste decreto-lei o juiz, ou Tribunal, deverá inspirar-se nos conceitos básicos de segurança nacional definidos nos artigos anteriores”. Não obstante, os artigos anteriores não definem com rigor o que seja a segurança nacional. Há apenas um vago conceito, que permite uma interpretação de acordo com a vontade do juiz ou interessado. Ou seja, qualquer um pode praticar os crimes previstos no decreto-lei, depende do que o intérprete entender o que seja segurança nacional.

No período de ditadura militar, derivada do golpe de 1964, a polícia possuía toda munição legal para perseguir os subversivos, que a lei também não definia o que seriam. Deste modo, qualquer pessoa contrária ao regime estaria enquadrada na lei em questão.

Lei 11.343/2006 (Lei de Tóxicos).

Os artigos 28 e 33, em especial, trazem inúmeros verbos que definem condutas criminosas. São diversas condutas que se equivalem normativamente, e cujas penas são idênticas. Quem “tem em depósito” cinco gramas de substância entorpecente, mesmo que por um dia, responde pelo mesmo crime que aquele que “fabrica” uma tonelada de cocaína.

As penas cominadas para o artigo 33 variam de 5 a 15 anos, além da multa. Compartilhando da posição de Luis Greco, essa pena é superior a crimes mais danosos, como incêndio (art. 250), explosão (art. 251) e inundação (art. 254), cujas penas variam de 3 a 6 anos.[24] Outra deformidade da lei de tóxicos pode ser apontada: segundo o CP, quem fabrica substância nociva à saúde, ainda que não destinada à alimentação ou fim medicinal, pode cumprir pena de 1 a 3 anos de reclusão. Se for fabricação de substância entorpecente, a pena aumenta de 3 a 15 anos de reclusão.[25]

O princípio da proporcionalidade é ignorado por completo na lei de drogas. Tal desproporcionalidade é uma das características apontadas por Jakobs no direito penal do inimigo. Condutas de periculosidades semelhantes, dentro de um mesmo ordenamento, são tratadas em medidas distintas.

Ainda, os tipos dos artigos 28 e 33 são inflados de verbos, que buscam descrever todas as condutas possíveis e imagináveis do usuário e do traficante. Melhor dizendo: quando um tipo penal é composto de inúmeros verbos, que fecham todas as possibilidades de incriminação, o que se busca, na verdade, é pessoa determinada, e não fato. Os artigos 28 e 33, no fundo, punem o traficante e o usuário, respectivamente, e não o tráfico ou o uso.

Aplicação e suspensão condicional da pena.

O artigo 59 do Código Penaldetermina ao juiz estabelecer a pena a ser aplicada de acordo com os antecedentes, as condutas sociais e a personalidade do agente. Em seguida, o artigo 77 faculta ao juiz suspender a pena por 2 a 4 anos quando o agente, entre outros requisitos, possuir culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade que permitam o benefício.

Exemplo mais evidente não há de que o condenado somente será beneficiado ou prejudicado na aplicação da pena em conformidade com a sua personalidade. O critério puramente subjetivo adotado pelo Código Penal permite toda discricionariedade do juiz no momento de aplicar a pena ou suspendê-la. Se a personalidade do condenado agradar ao julgador, os benefícios serão concedidos. Caso contrário, nada há a fazer.

Liberdade provisória e fiança

Trata-se de manifestação do direito penal do inimigo no Código de Processo Penal. Especificamente, o art. 323, IV, traz o seguinte texto:

“Art. 323. Não será concedida fiança:

(…)

IV – em qualquer caso, se houver no processo prova de ser o réu vadio.”

Complementando o texto do CPP, a definição de vadiagem, constante na Lei de Contravencoes Penais:

“Art. 59. Entregar-se habitualmente alguém à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 03 (três) meses. 

Pelas duas transcrições dos textos de lei, percebe-se que o “vadio” não pode ser beneficiado pela liberdade provisória mediante fiança, independentemente do crime cometido. O problema maior reside na opção do legislador em vedar tal benefício àqueles que não possuem condições de subsistência própria, de forma taxativa.

Evidente a separação de classes que o legislador impôs ao Código de Processo Penal. Ora, o “vadio” em questão é aquele que pertence à classe social mais baixa, que pode estar na “ociosidade” por não haver emprego disponível (o que é nada incomum na atuação situação econômica do país). Se o acusado for de classe alta, e mesmo assim não tiver emprego, poderá ser beneficiado pelo pagamento da fiança, pois alguém de sua família possui renda suficiente.

Entendo, por isso, que o art. 323IV, do CPP é instrumento de separação de classes: os cidadãos (que podem prover a própria subsistência) e os inimigos (os desocupados sem renda alguma). Ferem-se os princípios da igualdade e da dignidade humana. Ninguém pode ser impedido de obter um benefício legal por conta de sua condição econômica.

6. CRÍTICAS

1) Toda e qualquer pessoa deve ser considerada um ser humano, alguém passível de direitos e deveres. A igualdade perante a lei está consolidada em tratados internacionais, uma vez que ninguém pode ser julgado fora da condição de pessoa humana, muito menos por tribunais de exceção, por meio de leis direcionadas a cada personalidade.

2) O direito penal do inimigo é o direito penal do autor, combatido rigidamente pela doutrina, em especial após o período de nazismo que dominou a Alemanha (e também o fascismo, na Itália). Não é mais concebível um direito penal que persiga a personalidade ou grupos de pessoas. A lei penal deve incriminar fatos geradores de conseqüências penais, e não pessoas.

3) A função da pena no direito penal do inimigo possui caráter mais repressivo que a retribuição. A função de retribuição da pena, em linhas gerais, procura devolver ao autor o mal causado à vítima, enquanto o direito penal do inimigo atribui a pena antes de haver qualquer lesão. Se a retribuição da pena é abominável, aplicá-la antecipadamente do fato também o é.

4) O sistema de direito penal de Jakobs é aberto. Há um grande perigo de aceitação do direito penal do inimigo, pois há vários caminhos para a instalação de um Estado autoritário. Assim como o Estado pode ter legitimidade para perseguir terroristas, abre-se a oportunidade de perseguição há outros grupos de pessoas consideradas “inimigas” da sociedade ou indesejadas por uma classe dominante, como, por exemplo, os homossexuais e os estrangeiros. 

5) Não é possível especificar em lei quem são os “inimigos” que merecem tratamento diferenciado do direito penal. O princípio da legalidade é violado em todos os aspectos, já que não se pode delimitar a conduta a ser incriminada porque busca-se a punição à pessoa, e não ao fato. Ou os tipos são vagos demais, possibilitando uma interpretação ampla, ou apresentam inúmeras condutas para que pelo menos uma possa incriminar o autor (com vários verbos descritos, há de existir um que possa enquadra-se no fato praticado).

6) Abre-se a possibilidade de indicação de setores de investigação específicos para determinada espécie de criminalidade que incomoda os detentores do poder.[26] O direito penal deixa de ter apenas conteúdo ideológico para servir a uma ideologia dominante. É o risco exposto acima: assim como abre-se a perseguição a um sujeito realmente perigoso, há flexibilidade para estender a repressão a grupos indesejados no convívio social.

7) Há, porém, um aspecto positivo do direito penal do autor. Segundo Roxin, esse direito pode ser utilizado com finalidade de prevenção especial. É possível separar do ordenamento jurídico aquelas pessoas que NÃO merecem a pena. Ou seja, pelo tipo penal, pode-se excluir as pessoas a quem a pena seria desnecessária.[27]Por exemplo, o artigo 12 da Lei de Tóxicos – nem todos que praticam as condutas do tipo são traficantes. Note-se que por mais não se aceite esta doutrina, não se pode ignorá-la por completo.

CONCLUSÃO

O direito penal do inimigo é plenamente explicável, mas não é justificável. O sentimento de insegurança impera sobre a vida de todos, porém, este não pode dominar a racionalidade do Estado. O homem, enquanto ser individual, pode deixar-se tomar conta pelo medo, mas o Estado tem que agir sempre racionalmente.

Permitir o direito penal do inimigo é jogar às traças as conquistas do homem, que sempre lutou pela liberdade e pela democracia. Um direito autoritário, sem limites, facilita a ascensão de quem possa utilizá-lo através de manobras sobre as massas, com o perigo de novos genocídios e tragédias.

Entendo que o direito penal deve ser reformulado por completo para atender aos anseios da população por mais segurança, não obstante, o Estado democrático tem que ser mantido, existindo, ao menos, um ponto de apoio ao direito: a Constituição Federal. Leia-se a Carta Magna com todo seu conteúdo formal e material.

Resumindo nas palavras de Cancio Meliá, aluno e discípulo direto de Jakobs, o direito penal do inimigo não é direito. Uma vez que se aceite o direito penal do inimigo, haverá apenas o termo inicial, mas nunca saberemos em que ponto poderá chegar.

BIBLIOGRAFIA

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2001.


[1] JAKOBS, Derecho penal…, p. 08.

[2] JAKOBS, Sociedad…, pp. 23 e 24.

[3] JAKOBS, Derecho penal del enemigo, pp. 36 e 37.

[4] PRITTWITZ, pp. 110 e 111.

[5] PRITTWITZ, p. 111; VOLK, p. 02.

[6] SILVA SÁNCHEZ, p. 149.

[7] JAKOBS, Derecho penal del enemigo, p. 14.

[8] JAKOBS, Derecho penal del enemigo, p. 40.

[9] PRITTWITZ, p. 116.

[10] ROXIN, p. 179.

[11] Digo que o direito penal do autor DOUTRINÁRIO perdeu forças porque, como será visto adiante, na prática legislativa, o direito penal do autor sempre esteve e continua presente.

[12] VOLK, p. 02.

[13] CANCIO MELIÁ, pp. 79 e ss.

[14] PRITTWITZ, p. 115.

[15] JAKOBS, Derecho penal del enemigo, p. 35.

[16] VOLK, p. 10.

[17] JAKOBS, Derecho penal del enemigo, pp. 25 a 27; ESER, p. 12.

[18] SILVA SANCHEZ, na obra Direito penal em expansão ( Editora RT, 2001).

[19] ZAFFARONI/PIERANGELI, p. 118.

[20] ZAFFARONI/PIERANGELI, pp. 118 e 119.

[21] GRECO, p. 232.

[22] JUNQUEIRA, p. 85.

[23] NOLZ, p. 03.

[24] GRECO, p. 227.

[25] GRECO, pp. 227 e 228.

[26] JUNQUEIRA, p. 85.

[27] ROXIN, p. 188.